No coração da floresta amazônica, onde os rios desenham caminhos de vida e cultura, há quem enxergue na comida uma forma de resistência. Para o chef paraense Saulo Jennings, cada prato é uma narrativa — uma forma de reafirmar a identidade de um povo que vive do que a natureza oferece, no tempo certo e na medida justa.
Foi com essa filosofia que ele construiu sua trajetória e, mais recentemente, chamou a atenção do mundo ao recusar cozinhar para um jantar do príncipe William, no Rio de Janeiro, após divergências sobre o menu vegano solicitado pela organização do evento.
CONTEÚDOS RELACIONADOS
- Feriado em Belém: pontos turísticos terão entrada gratuita e horários especiais
- DiCaprio pede ação climática e anuncia US$ 500 mi para povos indígenas
- Av. Arthur Bernardes não será mais interditada durante a COP30
“A gente tem que valorizar tudo que a floresta nos dá na sua hora e na sua quantidade”, disse Jennings, em tom sereno, mas firme, durante reportagem para a BBC News Brasil.
Natural de Santarém, no oeste do Pará, o chef é hoje um dos principais nomes da culinária amazônica contemporânea e o primeiro embaixador gastronômico da ONU Turismo, título concedido a quem promove práticas de turismo sustentável. A sua missão é clara: defender a Amazônia não apenas com discursos, mas com temperos, ingredientes e histórias servidas à mesa.
O polêmico jantar do príncipe
A polêmica começou quando Saulo foi convidado para assinar o jantar do prêmio ambiental Earthshot, fundado pelo príncipe William. Segundo o chef, a organização do evento teria pedido um menu 100% vegano para os 700 convidados — algo que, para ele, significaria excluir justamente a essência da cozinha amazônica.
“A cultura alimentar do meu povo é tudo que vem da floresta e dos rios”, diz ele. “Não ser vegano não significa não ser sustentável na Amazônia. Sustentável, pra nós, é respeitar o que a floresta nos dá", disse Jennings em entrevista.
Jennings revelou que chegou a propor um cardápio 80% vegetal e 20% com peixes amazônicos, mas, diante da recusa da organização, desistiu do contrato. O príncipe, segundo fontes do evento, não teve envolvimento direto na negociação. Ainda assim, o episódio repercutiu globalmente e reacendeu o debate sobre sustentabilidade alimentar versus respeito às culturas locais.
Do Tapajós para o mundo
O apego de Jennings à natureza vem de infância. Cresceu às margens do rio Tapajós, onde aprendeu a pescar, cozinhar e entender o tempo das águas — uma sabedoria que mais tarde se tornaria a base de sua filosofia culinária.
Quer mais notícias do Pará? Acesse nosso canal no WhatsApp
Há 15 anos, abriu um pequeno restaurante em Santarém, de onde começou a difundir a culinária da região. Hoje, comanda o Casa do Saulo, com unidades em Belém, São Paulo e no Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro. Sua cozinha é uma ode à Amazônia: pirarucu grelhado, tucupi fresco, farinha d’água, jambu, açaí — tudo com origem controlada e manejo sustentável.
O pirarucu, aliás, é seu ingrediente-símbolo. O peixe, que já esteve ameaçado de extinção, tornou-se um exemplo de manejo sustentável na região. Saulo Jennings participa ativamente de projetos que envolvem comunidades ribeirinhas e indígenas na pesca e venda responsável do animal.
“Você tirar o peixe da natureza na hora certa e com respeito é sustentável”, afirma o chef, que tem o desenho do pirarucu tatuado no braço. Segundo ele, mais de mil famílias vivem hoje da cadeia produtiva ligada ao peixe que abastece seus restaurantes.
Pratos, polêmicas e propósito
A recusa ao jantar do príncipe não foi o primeiro embate de Jennings com grandes eventos internacionais. Durante os preparativos da COP30, que será realizada em Belém, ele e outros chefs reagiram à exclusão de ingredientes como açaí, tucupi e maniçoba dos cardápios oficiais, sob alegação de “risco de contaminação”. Após a repercussão negativa, o governo federal revisou a decisão.
“Tudo na Amazônia é in natura. O que precisamos é de diálogo e de respeito. Quando um pedido exclui nossos ingredientes, o que sinto é que estão tentando apagar um pedaço da nossa identidade", comenta o chef.
Para Saulo, a gastronomia é uma ferramenta política — uma forma de mostrar que comer peixe da Amazônia, por exemplo, é tão sustentável quanto defender a floresta em conferências. “Salada é do europeu. O nosso é farinha, peixe, açaí, tucupi. Isso é o que nos representa", diz ele.
Embaixador dos sabores da floresta
Saulo Jennings tornou-se, assim, um símbolo da resistência gastronômica amazônica. Sua trajetória o levou a cozinhar para eventos diplomáticos e até para a embaixada britânica em Brasília, em 2023, quando homenageou a coroação do rei Charles III com uma versão amazônica do tradicional fish and chips — substituindo o peixe inglês pelo pirarucu.
Agora, com a COP30 se aproximando, ele acredita que Belém vai “conquistar o mundo pela barriga”. “A boa mesa é onde tudo começa. É no prato que a gente entende o outro, respeita a cultura e faz as pazes com o planeta”, resume.
Do pequeno igarapé de Santarém às mesas internacionais, Saulo Jennings se firmou como algo mais do que um chef: é um contador de histórias da floresta, que usa a comida como ponte entre o local e o global — e que, mesmo diante de um príncipe, não abre mão do sabor da Amazônia.
Seja sempre o primeiro a ficar bem informado, entre no nosso canal de notícias no WhatsApp e Telegram. Para mais informações sobre os canais do WhatsApp e seguir outros canais do DOL. Acesse: dol.com.br/n/828815.
Comentar