“Quem vai trabalhar sem as garantias de EPIs? Sem a garantia de medicações, leitos, ventiladores mecânicos e dos testes necessários para o atendimento adequado? E ainda com risco de agressões físicas e verbais pelos próprios pacientes e acompanhantes? O principal sentimento que tive foi de medo; muito medo...”
Esse é o desabafo da médica Carla Helena Xavier Wanderley Rocha, 30 anos, especialista em clínica médica, infectada pela Covid-19. Assim como ela, vários outros profissionais de saúde que trabalham na linha de frente contra a doença contraíram o vírus e tiveram de se afastar do trabalho, embora ela não saiba dizer onde foi contaminada. Até sexta-feira, 6 médicos haviam falecido em decorrência da doença no Estado. Segundo o Conselho Estadual de Enfermagem, dados extraoficiais apontam que mais de 150 profissionais de enfermagem estão afastados por suspeita ou confirmação de infecção pela Covid-19 na região metropolitana.
Normalmente o sistema de saúde pública sempre trabalhou no limite. Com a pandemia da Covid-19 esses problemas aumentaram com o crescimento descontrolado da doença e a maior demanda da população doente.
Carla teve contato com pacientes suspeitos/confirmados de Covid-19 e começou a apresentar sintomas leves, quando foi afastada do trabalho. “No quarto ou quinto dia minha tosse teve uma piora importante ao ponto de não conseguir dormir. Fui em um hospital e fiz uma tomografia de tórax que apresentou lesões características da doença. Fiz a coleta de material”
Desde 21 de março a médica, que mora sozinha, deixou de ter contato presencial com sua família, já que sua mãe é do grupo de risco. “Você se vê doente; com tosse; febre e mal-estar e está sozinho, para não contaminar sua família. É desesperador! Você tem que ser forte, fazer videochamadas para dizer que está tudo bem, mesmo não estando. Foram uns 3 dias assim”.
O resultado saiu positivo no 10º dia da doença. “Hoje (na última quarta-feira) já estou no 14º dia, me sinto muito bem e pronta para retornar para guerra. Mas é muito triste estar em isolamento domiciliar e ver as piores notícias...”. Até março a médica atuou na rede municipal de saúde, mas saiu e atualmente trabalha no Hospital Universitário João de Barros Barreto (HUJBB), Hospital de Clínicas Gaspar Viana e Hospital Guadalupe.
O médico Mário Roberto Tavares, 30, trabalha em um hospital particular e no Hospital de Retaguarda Municipal Dom Vicente Zico. Ele diz que trabalhar na linha de frente tem sido estressante e cansativo. “A demanda aumentou absurdamente e o serviço de saúde, que já era deficiente, agora se mostra mais frágil do que nunca. Faltam profissionais, leitos e infraestrutura de atendimento. Por mais que o governo do Estado se esforce, não é suficiente para compensar o descaso de saúde acumulado de tantos anos na nossa cidade”.
Além disso, ele diz que os profissionais de saúde lidam com uma população dominada pelo medo, que tem agredido os profissionais devido à demora nos atendimentos. “Fazemos o melhor dentro de nossas possibilidades, mas nunca é o suficiente”.
Antecipação de formatura de alunos
Uma situação que pode amenizar a falta de profissionais é a antecipação das formaturas e a convocação de médicos residentes. A saída é polêmica e ainda não é unânime entre o meio médico.
A Universidade Federal do Pará (UFPA) informou que está estudando viabilizar a integralização dos currículos dos alunos dos cursos de Medicina, Enfermagem, Farmácia e Fisioterapia em maio, sem interferir na qualidade da formação dos acadêmicos.
A Universidade do Estado do Pará (Uepa) antecipou essa semana a formatura de alunos do curso de Medicina, dos campi de Belém (48) e Marabá (13). Também inclui a antecipação de 19 diplomas no campus de Santarém, no último dia 9 de abril, completando a formação de 80 médicos no total.
Silvestre Savino Neto, cirurgião vascular e presidente da Sociedade Brasileira de Angiologia e Cirurgia Vascular- Regional Pará e diretor da Faculdade de Medicina da UFPA lembra que a antecipação da colação de grau para alunos do último semestre do curso de Medicina não é uma solução para o problema.
“São médicos em início de atividade mas, desde que treinados e com o uso de EPI adequados, podem contribuir no atendimento em unidades de menor complexidade”, analisa.
Antes de suprir a carência no sistema, Silvestre lembra que é preciso fornecer aos profissionais estrutura para atendimento e EPIs suficientes. “Sem isso, continuaremos com muitos afastamentos, o que continuará desfalcando as unidades de atendimento. O médico, sozinho, não pode resolver tudo”.
Waldir Cardoso, diretor do Sindmepa, lembra que os médicos afastados por Covid-19 agravam a falta de contratação que já existia em Belém antes da pandemia. “Os recém-formados não estão preparados para atuar na linha de frente pela falta de experiência. Precisarão de treinamento intensivo. Os médicos residentes são estudantes de pós-graduação e fazem treinamento em serviço e estão na mesma situação. A todos recomendamos não trabalhar sem a proteção de EPI e cobertura de contrato de trabalho pela CLT”, pondera.
Boa parte dos médicos nas UPAs atua como serviços prestados
A relação de trabalho da prefeitura de Belém e médicos que atuam nas UPAs e prontos-socorros é frágil. Boa parte atua como serviços prestados e ganha por aquilo que produz, sem direitos trabalhistas como férias; 13º; direito de afastamento por doença; além de não existir plano de carreira.
“A situação é crítica. Não há gestão e os profissionais têm que comprar seus próprios EPIs”, denuncia Miriam Andrade, coordenadora-geral de Política Sindical do Sindicato dos Trabalhadores em Saúde do Estado do Pará (Sindsaúde-PA),
Ela lembra que há muitos anos que a prefeitura de Belém não realiza concurso público e tampouco implementa uma política de valorização dos trabalhadores da área da saúde e a deficiência de pessoal é muito grande e a contratação é feita de forma precária. “Com o caos, a prefeitura tem que contratar de forma urgente e de maneira mais precária ainda, sobretudo após o afastamento de dezenas de trabalhadores atingidos pela doença”.
Miriam cita o caso do técnico de radiologia do PSM da 14 de Março, Fernando Brito, de 62 anos, que faleceu de Covid-19. “Ele tinha 62 anos e era diabético. Foi afastado por estar no grupo de risco, mas depois intimado a retornar. Foi contaminado e morreu”.
Em nota emitida essa semana, o Sindicato dos Médicos do Estado denunciou que “há falta de providências adequadas, pertinentes e tempestivas por parte da administração municipal no enfrentamento da pandemia; falta de planejamento e efetivação da contratação de novos médicos, especialmente para o atendimento de casos de Covid; ausência de contratos de trabalho que garantam segurança e direitos trabalhistas aos médicos que estão sendo contratados emergencialmente; ausência de treinamento para os médicos e demais servidores no uso de equipamentos de proteção individual (EPIs)”.
Danielle Cruz, presidente do Conselho Regional de Enfermagem do Pará (Coren-PA) diz que a enfermagem representa um contingente de 60% de pessoal nos serviços de saúde, e atuando na linha de frente do combate ao novo coronavírus. “Esses profissionais estão cada vez mais expostos a uma carga viral alta”.
Algumas ações do governo
O governador Helder Barbalho já determinou várias medidas para desafogar o atendimento nas unidades de saúde municipais, aumentando o número de leitos e contratando mais profissionais de saúde.
Os Hospitais Galileu, Metropolitano e Abelardo Santos, por exemplo, vão dispor de 95 novos leitos de enfermaria. Além disso, o Hospital Metropolitano terá mais 5 novos leitos de UTI. Nos próximos dias serão instalados mais leitos para tratamento intensivo, com mais 450 leitos de UTI, além da entrega do Hospital de Campanha do Marajó, em Breves.
Entre algumas das iniciativas mais recentes do Estado para dar suporte e apoio aos municípios na atenção básica aos pacientes, sobretudo na Região Metropolitana de Belém, foi disponibilizada a Policlínica Metropolitana, que fica no bairro do Marco, em Belém que, apenas na última terça-feira, atendeu cerca de 500 pessoas.
RESPOSTA
A Secretaria Municipal de Saúde informa que 431 servidores já foram afastados por apresentarem sintomas ou exame positivo para a Covid-19, o que representa cerca de 5% do quadro da instituição, somando todas as categorias. “Ressaltamos que muitos profissionais atuavam em diversas instituições, nem todos tinham vínculos com a Sesma”, diz a Sesma, em nota.
A secretaria garante que está abastecendo continuamente os serviços de saúde com equipamentos de proteção individual preconizado pela Anvisa e Ministério da Saúde com os EPIs que estão em seu estoque, apesar da “dificuldade global na aquisição desses itens”.
Informou ainda que “os serviços das 3 UPAs foram transferidos de acordo com o que é determinado pela legislação em vigor. Todos os servidores são contratados de forma temporária pela lei que rege esse regime de vínculo”. Quanto aos EPIs, “estão garantidos para todas as escalas de servidores em toda a rede de saúde de Belém”, diz a nota.
Em relação à terceirização da gestão das UPAs, a prefeitura afirma que ampliou a rede de Saúde, e que na segunda-feira vai inaugurar a quinta unidade. Segundo a Sesma a produção dos serviços municipais soma quase 2,5 milhões atendimentos por mês.
Sobre a composição das equipes médicas, “a Sesma está com escala incompleta em vários serviços, devido à desistência dos profissionais sem tempo hábil para refazer a escala”, mas “tem buscado alternativas para recompor essas equipes”.
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