Os efeitos da mudança climática estão severos no Brasil, mas no que se refere ao abastecimento de energia elétrica para os próximos meses, pelo monitoramento até agora, o país não vive o risco de uma crise como ocorreu em outras secas. O desafio na atual estiagem é administrar a oferta no período de ponta, nas primeiras horas da noite. As soluções, porém, vão muito além de medidas emergenciais, como a volta do horário de verão, e estão atrasadas. Esse é o diagnóstico de especialistas do setor ouvidos pela Folha.
Como o cenário de pressão na ponta tende a se estender ao longo do verão, com efeito sobre os reservatórios de hidrelétricas, o temor no setor é que esse desafio, que deveria ajudar no aperfeiçoamento do modelo de operação do sistema, acabe servindo só para justificar que o consumidor pague por um grande número de térmicas caras, muitas delas desnecessárias ou até prejudiciais.
"A gente precisa tomar muito cuidado neste momento porque parece existir um movimento articulado para inflar uma sensação de crise, assustar a sociedade e promover uma contratação de termelétricas desnecessárias, que vão, por anos, encarecer a energia no Brasil e, a depender da modelagem, ainda vão carbonizar a matriz energética brasileira, que hoje está entre as mais limpas do mundo", afirma Paulo Pedrosa, presidente da Abrace, entidade que reúne os maiores consumidores industriais do país.
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O risco, explicam diferentes especialistas ouvidos pela Folha, vem do fato de que vários contratos de térmicas a óleo combustível e diesel, por exemplo, estão vencendo. O equivalente a 1,4 GW (Gigawatts) em contratos termina neste ano. O Congresso analisa a prorrogação de subsídios para térmicas a carvão, o que geraria custo extra na conta de luz de R$ 92 bilhões até 2050 e pioraria o efeito da mudança climática, que já deixou o Rio Grande Sul debaixo d'água e agravou as queimadas no país.
Há ainda a tentativa de reposicionar térmicas a gás no sistema. O MME (Ministério de Minas e Energia), por exemplo, reforçou junto ao TCU (Tribunal de Contas da União) que a estiagem é um indicativo para o órgão aprovar o acordo entre a pasta e a Âmbar Energia para o uso da antiga térmica de Cuiabá, ao custo de cerca de R$ 9 bilhões, no lugar da operação das novas usinas previstas no leilão emergencial de 2021, o PCS (Procedimento Competitivo Simplificado).
Procurada pela Folha, a Abraget, que representa geradores térmicos, enviou nota afirmando que as medidas para o segmento avançam corretamente.
"A Abraget informa que, em sua opinião, o Ministério de Minas e Energia está na direção correta ao sinalizar realização de um leilão de confiabilidade em breve. E que, com satisfação, tem verificado o direcionamento adequado que está sendo adotado para substituir cerca de 10 GW de térmicas descontratadas por um montante que possa nos garantir segurança eletroenergética tanto agora como a partir de 2025."
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Térmicas e hidrelétricas se tornaram a essência do sistema interligado nacional a partir do traumático racionamento entre 2001 e 2002. Basicamente, esse modelo hidrotérmico prevê o acompanhamento das chuvas e dos reservatórios das usinas, mirando um nível de água seguro em novembro, o período mais crítico da estiagem. As térmicas são acionadas para poupar água. A meta sempre foi o abastecimento ao longo do dia.
No entanto, o perfil da oferta de energia mudou com as fontes renováveis. Ao longo do dia, especialmente, das 10h às 15h, existe forte entrega fotovoltaica, que ajuda no pico de consumo por volta das 14h. Mas essa fonte some ao pôr do sol, momento em que há um novo aumento de demanda --a iluminação pública é acionada, as pessoas vão para casa, ligam a luz, a TV, bares e restaurantes recebem clientes.
A energia solar responde hoje por quase 10% do abastecimento, sendo que pouco mais da metade vem de micro e minigeração distribuída, que são aqueles painéis solares nos telhados das casas ou em fazendas pelo sistema de parceria.
Para detalhar cenários para o abastecimento e medidas, a Folha fez contato com MME, ONS (Operador Nacional do Sistema), Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) e EPE ( Empresa de Pesquisa Energética), sem obter retorno.
Em sua página na internet, o ONS já detalha o problema. Apresenta projeções até o ano que vem, com os horários críticos entre o fim da tarde e parte da noite, e demonstra como pode atender as lacunas. Sinaliza que vai usar até a chamada reserva operativa, que é um volume adicional de energia, incluído diariamente no programa de atendimento ao consumo.
Na quinta-feira (19), a instituição também tornou público um plano de contingência na reunião do CMSE (Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico), medidas avaliadas como corretas pelo setor, mas a maioria ainda de caráter emergencial.
Segundo Luiz Augusto Barroso, presidente da PSR, conceituada consultoria do setor, o pico de consumo no início da noite, conhecido como "demanda líquida", apesar de ser menor que o pico das 14h, exige atuação que não é trivial no Brasil.
"A necessidade de suprimento de ponta e da demanda líquida será cada vez mais frequente, e é uma mudança de paradigma para o planejamento e operação do país, historicamente focado no suprimento de energia", diz Barroso.
"Nesse sentido, é fundamental dar ao planejamento e à operação os instrumentos para suprir essas necessidades." Uma delas é a realização de leilão de reserva de capacidade, que está atrasado, e deveria ocorrer anualmente, na avaliação dele.
Esse leilão, defende o setor, também não poderia se concentrar em térmicas. "Não podemos usar apenas a solução mais fácil, que é acionar térmicas caras, até porque não é qualquer térmica que pode ser usada nesse atendimento", diz Luiz Eduardo Barata, presidente da Frente Nacional de Consumidores que já comandou o ONS.
Para atender uma lacuna a partir das 18h, a térmica precisa ser acionada no mínimo umas quatro horas antes, e também não é desligada logo depois. Nesse meio tempo, o custo sobe para o consumidor e ainda é preciso excluir do sistema outras fontes. Se for hidrelétrica, é até bom, porque ela guarda água. Porém, tirar do sistema eólico, quando está em plena operação a custo bem inferior, é problema.
"Eólicas têm sido desligadas para que térmicas entrem no horário de ponta, e isso é desperdício de energia. É preciso um aperfeiçoamento estrutural na operação do sistema", explica Elbia Gannoum, presidente-executiva da Abeeólica, entidade que representa esse segmento.
Para tentar amenizar o problema, o ONS priorizou as térmicas Santa Cruz e Linhares, a GLV (gás natural liquefeito), que são mais ágeis para ligar e desligar. Mas o setor defende que dá para ampliar o escopo de alternativas, adotando inclusive baterias, que o governo protela em dar uma definição.
"A intermitência é uma característica da fonte, e o investimento em infraestrutura, como baterias, evitaria inclusive que energia fosse jogada fora", diz Ronaldo Koloszuk, presidente do conselho de administração da Absolar (Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica).
A oscilação de oferta ao longo do dia também criou outro problema, que o consumidor residencial não vê, mas já afeta o mercado: forte oscilação no preço, que pode comprometer inclusive a saúde financeira das empresas, alerta o analista Giuliano Ajeje, do banco alemão UBS.
No boom de renováveis, várias indústrias se tornaram parceiras de geradores para obter energia limpa, com apoio de subsídios. Quando a fonte é solar, a fornecedora parceira compra energia durante a noite para abastecer grandes empresas. Enquanto o preço estava estável, era jogo de soma zero. Com a redução de oferta no pico, o preço passou a descolar, tanto ao longo do dia, como entre as diferentes regiões do país.
Um exemplo extremo ocorreu em 28 de junho. O preço que vinha em R$ 61 ao longo do dia saltou para R$ 1.470 às 18h, num descolamento que surpreendeu o mercado, para depois retornar aos R$ 61.
Diariamente, explica Ajeje, os preços agora descolam, não tão drasticamente, mas o suficiente para ir sobrecarregando o caixa dos negócios que atuam especialmente com energia solar.
"Eu vejo risco de solvência de empresas e escrevi isso em um relatório, seja de comercializadoras ou mesmo parques solares", diz Ajeje, destacando a necessidade de o país também discutir uma nova modelagem para os preços da energia.
ENTENDA A DIFERENÇA ENTRE ENERGIA E POTÊNCIA
Oferta de potência é a garantia instantânea de abastecimento a cada momento, medida em W (watt). Uma lâmpada de 100 W é capaz de oferecer esse montante de iluminação
Oferta de energia é a garantia de abastecimento ao longo do tempo, medida em Wh (watt-hora). Uma lampa de 100 W ligada por três horas terá oferecido 300 Wh
MEDIDAS ANUNCIADAS PELO ONS E MINISTÉRIO DE ENERGIA
- Começou a testar os efeitos do programa-piloto de resposta da demanda, em que grandes consumidores reduzem ou até não consomem em horários mais críticos, combinados com o ONS
- Reavaliou o parâmetro de segurança para uso de renováveis, que tinha ficado mais restritivo após o apagão de 15 de agosto de 2023, reinjetando no sistema de 2 GW a 3 GW de energia produzida no Nordeste
- Deu sinalização positiva para a volta do horário de verão após as eleições
- Determinou economia de água nas usinas de Porto Primavera e Jupiá, no interior de São Paulo, mesmo que comprometa o uso múltiplo que inclui a hidrovia, e também economia de água em Belo Monte, no Pará, ao longo do dia, para uso ao entardecer e início da noite
- Destacou a importação de energia
- Avisou que é prioridade concluir as linhas de transmissão que vão permitir o escoamento da energia das térmicas Porto Sergipe e de usinas do Rio de Janeiro e Espírito Santo
MEDIDAS DEFENDIDAS PELO MERCADO
- Formalização do programa permanente de resposta pela demanda
- Realização do leilão de potência, oficialmente chamado leilão de reserva de capacidade, competitivo, com neutralidade de fontes, incluindo hidrelétricas e baterias
- Adoção de reserva para fonte solar, com o uso de baterias
- Criação de um programa organizado de monitoramento do sistema de transmissão para reforçar as atuais linhas e fazer a expansão, evitando o descasamento entre novos projetos e o escoamento da energia
- Revisão do modelo que fixa o preço da energia
- Retomada do PL 414, proposta de reforma ampla do setor que, já tivesse virado lei, teria evitado boa parte dos problemas atuais
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