Em duas semanas, o líder kokama Edney Samias, 38, perdeu oito parentes para a Covid-19, incluindo o pai e o avô, todos atendidos no hospital do Exército de Tabatinga, o único da cidade. Indignado com a assistência médica, ele passou a aconselhar outros doentes indígenas a se tratar em casa, utilizando medicina tradicional.
"O erro foi ter levado o meu pai pro hospital. Se não tivesse levado, ele estava vivo. Todo dia esperava o avião vir. Estou com a minha mala arrumada desde o dia 3. Até hoje, o avião não veio, e o meu pai morreu no dia 14", diz, em entrevista na comunidade Guadalupe, de casas erguidas sobre palafitas.
"Os oito parentes morreram em 14 dias. Um atrás do outro, fomos enterrando todo mundo. Eu nem descansava. Quando ia dormir, alguém ligava: 'Morreu teu tio'. 'Morreu teu avô'. Se morrer mais um kokama, a gente nem tem lágrima."
A revolta de Edney tem respaldo no registro do pai, Guilherme Samias, 64, que consta no Sistema de Transferências de Emergências Reguladas (Sister), da Secretária de Saúde do Amazonas (Susam). É esse sistema que administra a remoção de pacientes a Manaus, a única cidade do Amazonas com UTI, distante 1.110 km em linha reta de Tabatinga.
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A pedido da reportagem, a Susam informou que a remoção de Guilherme Samias foi pedida pelo Hospital de Guarnição de Tabatinga, gerida pelo Exército, em 5 de maio. Naquele dia, a unidade relatou ao Sister que Guilherme Samias "estava em estado grave, mas mantinha quadro estável da parte respiratória e hemodinâmica".
Após esse registro, porém, o hospital deixou de fazer atualizações sobre o estado de saúde do indígena, apesar de pedido feito pelo médico da Secretaria de Atenção Especializada ao Interior.
Segundo a Susam, devido a novos pedidos diários, a atualização "da evolução clínica é de suma importância para a avaliação dos pacientes a serem removidos para Manaus".
Profissionais da saúde do interior ouvidos pela reportagem confirmaram que, sem essa atualização, o paciente praticamente não tem chance de ser transferido para uma UTI da capital.
Edney viu o pai vivo pela última vez em 3 de maio, quando ele deu entrada no hospital. "O ruim é que eles não dão um papel. É só palavra: o seu pai está assim, assim, assim. Muito friamente. Se eu questionava, eles já diziam que é hospital militar, que o Exército é que manda, que era um favor atender os índios, que não tem dinheiro pra índio. Eu não tinha nem por que reclamar se o hospital não é pra nós."
O atendimento do hospital militar de Tabatinga foi alvo de uma recente ação civil pública protocolada pelo Ministério Público Federal (MPF), pela Defensoria Pública da União (DPU) e pelo Ministério Público do Amazonas.
A ação civil, que pede melhorias estruturais, menciona que vieram a óbito 16 dos 33 pacientes com pedidos de transferência do hospital até 12 de maio. A peça cita que 4 das 20 cidades do país com maior incidência de Covid-19 estão na região: Amaturá, Santo Antônio do Içá, Tabatinga e Tonantins.
Nesta quarta-feira (20), o juiz federal Fabiano Verli determinou, via liminar, que o hospital preste serviço "universal e igualitário, independentemente da classificação do público como civis (inclusive, indígenas) ou militares, enquanto perdurar o cenário de calamidade pública do coronavírus".
Procurado, o Comando Militar da Amazônia (CMA) negou o pedido da reportagem para visitar o hospital "em virtude do momento conturbado, bem como iminente risco de contaminação" e pediu que as perguntas fossem encaminhadas por escrito.
Via email, o CMA informou que adotou todos os procedimentos previstos nos protocolos do Ministério da Saúde no atendimento de Guilherme Samias. "A estrutura hospitalar foi colocada à disposição do paciente em questão, durante sua permanência no hospital, evidenciando todo o esforço possível para o tratamento do cidadão", afirma o Exército.
"Cerca de 85% dos atendimentos realizados pelo Hospital Militar de Tabatinga são para a população civil, ou seja, militares e seus dependentes representam menos de 20% dos atendimentos", afirma o CMA.
Segundo a resposta por escrito, o hospital tem leitos semi-intensivos e de enfermaria, que estão operando com 40% e 25% de suas capacidades, respectivamente.
Povo mais atingido Nenhum povo indígena do Brasil foi tão golpeado pela epidemia do novo coronavírus quanto os kokamas, habitantes do alto rio Solimões, com populações também na Colômbia e no Peru. Houve 47 óbitos até quinta-feira (21), o que representa 43% dos indígenas mortos em todo o país.
Os números são da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), que reúne os óbitos a partir de informações repassadas por organizações indígenas. No caso dos kokamas, a responsabilidade pelo levantamento é de Edney Samias, liderança da Federação Indígena do Povo Kukami-Kukamiria do Brasil, Peru e Colômbia (TWRK).
Via Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), o Ministério da Saúde apenas contabiliza índios em aldeias, o que gera subnotificação. Nessa contagem oficial, que não especifica a etnia, 13 dos 27 óbitos por Covid-19 ocorreram no alto rio Solimões.
Segundo a TWRK, vivem 25 mil kokamas no lado brasileiro, dos quais 5.500 na área urbana de Tabatinga. Uma delas é a comunidade Guadalupe, com cerca de cem famílias.
Às margens do rio Solimões, Guadalupe é acessível por precárias palafitas de madeira. As casas são próximas umas das outras e, na cheia, pairam sobre um alagado. Dispõem de luz e água encanada, mas não de esgoto. A área é considerada de risco pela Defesa Civil.
Por não ser terra indígena, eles não têm atendimento médico da Sesai, que, segundo os kokamas, é melhor do que o oferecido na cidade. Outra queixa é que o hospital militar os classifica como pardos e não como indígenas.
Cacique da comunidade, Edmílson Kokama, 60, diz que ninguém morreu ali graças à orientação de não procurar atendimento médico. "O meu vizinho, seu Julio, levaram carregando. Disseram que não tinha leito pra colocar e trouxeram pra casa. Deram o remédio e ele já está andando, graças a Deus ficou bom", afirma.
Sua mulher, Adelaide Gonçalves, 57, uma das que sabem preparar o remédio contra a Covid-19, lista os ingredientes: boldo, alho, limão, gengibre, jambu, andiroba, mel de abelha e aspirina. "Já salvou muita vida", assegura.
*O repórter viajou a Tabatinga a convite do Greenpeace
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