A corda é um dos maiores símbolos de fé e devoção do Círio de Nazaré, representando a ligação entre os devotos que cumprem suas promessas e Nossa Senhora de Nazaré, conduzida na berlinda pelas ruas de Belém. O uso da corda na procissão começou em 1855, quando uma enchente na Baía do Guajará atolou a berlinda. Um comerciante local ofereceu uma corda para que os fieis pudessem puxá-la e, desde então, o item passou a integrar a procissão. Anteriormente importada, a corda passou a ser produzida no Pará a partir de 2023.
Pela importância que tem durante as romarias, muitos devotos desejam levar um pedaço da corda que conduz Nossa Senhora de Nazaré. Embora as autoridades organizadoras do Círio peçam que o imenso cabo de sisal seja cortado apenas ao final da procissão, isso quase sempre ocorre antes. Em alguns anos, como em 2024, ela foi cortada antes mesmo da parte final do percurso. Essa prática, relativamente recente, tem gerado diversas discussões entre os fiéis e a Diretoria da Festa de Nazaré (DFN).
A orientação oficial é sempre: "não cortem a corda", "há corda para todos", "esperem o fim da procissão e todos poderão pegar um pedaço". No entanto, o que frequentemente acontece é o oposto do que é recomendado nas semanas que antecedem o Círio e no próprio dia da procissão.
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Neste ano, por exemplo, a corda foi cortada antes de chegar à Praça da República, o que foi considerado pelos especialistas e organizadores da festa um corte prematuro, já que, normalmente, ela é cortada apenas quando a berlinda dobra na Avenida Nazaré, fase final da procissão.
Segundo o coordenador do Círio, Antônio Salame, além de comprometer a simbologia do ato de conduzir a corda, o corte também representa um risco aos romeiros. Além dos objetos cortantes utilizados, o impacto do corte pode causar ferimentos.
"Sabemos que essa ação de cortar a corda, principalmente de forma prematura, coloca em risco as pessoas ao redor. Os promesseiros cortam em um momento em que a procissão poderia seguir tranquilamente", explicou.
Corte que frustra
Iago Campos participa da corda desde 2018, quando prometeu fazer uma promessa caso seu primo, Heron, se curasse da Síndrome de Guillain-Barré. A promessa do jovem, que, na época tinha apenas 18 anos, era acompanhar a corda por cinco anos, caso o primo fosse curado, o que de fato aconteceu. Neste ano, em que celebrava o último ano do que prometeu à Nossa Senhora de Nazaré, com o primo ao seu lado, Iago se deparou com a frustração do corte da corda em um momento tão especial.
"Este ano eu só queria terminar minha promessa e agradecer por tudo. Ganhei pedaços de corda de outros romeiros que estavam ao meu lado. No entanto, cortaram a corda mais cedo, logo após a Praça da República. É frustrante, pois nosso objetivo é conduzi-la o máximo possível, seja até a Sé ou até a Basílica. Infelizmente, há pessoas que não participam para cumprir promessas, e isso acaba gerando frustração para aqueles que foram com esse propósito", disse.
O corte prematuro deixou Iago chateado, e ele relembrou da edição do Círio em que o objeto foi levado até o final, e os pedaços distribuídos pela Guarda de Nossa Senhora.
"Tem promesseiro que leva faca, mas a maioria tenta ir até o final, até onde der. Apenas uma vez fui até a Estação e, de lá, os guardas nos levaram até o Ver-o-Peso, onde a corda foi cortada por eles mesmos. Aí, eles distribuíram os pedaços para a gente. Isso aconteceu durante a Trasladação, e foi tranquilo. Deram um pedaço grande para cada um que estava lá. Como te falei, este ano eu não fiz questão, porque fiquei chateado. Quando cortaram, eu saí da corda”, contou.
Tumulto e tristeza
Para Raphael Lima, membro do grupo "Amigos da Corda", que completou 24 anos em 2024 e atua ajudando de diversas formas os romeiros que querem cumprir suas promessas chegando até a corda do Círio, a tendência é que, com o passar dos anos, a procissão termine mais rapidamente. No entanto, assim como Iago afirmou, o corte da corda não apenas causa tristeza, mas também tumulto e desorganização. O grupo também faz o papel de fiscalização, avisando a polícia e aos coordenadores do evento religioso quando algo está errado.
“A tendência, ao longo dos anos, é que o Círio flua cada vez mais rápido. Já tivemos um ano em que a procissão terminou após as 16h, mas hoje em dia não é assim. Não há problema se o Círio terminar, por exemplo, ao meio-dia, e a missa começar logo após a chegada. O problema surge quando a corda é cortada de forma prematura, o que causa desorganização, tumulto e, principalmente, uma tristeza para milhares de promesseiros”, lamentou.
O devoto destacou a união dos “verdadeiros promesseiros” para que a corda não seja cortada antes do tempo. Ele afirmou também que o que se vê durante a procissão são “súplicas” para que a corda não seja cortada.
“A Diretoria da Festa de Nazaré faz de tudo, dentro do possível, quase chegando ao impossível, para que isso não aconteça. E, mesmo que ocorra, os verdadeiros promesseiros se unem. Nós estamos lá e presenciamos o desespero e a súplica, sem exagero, de pessoas pedindo, pelo amor de Deus, que a corda não seja cortada. Infelizmente, isso acaba acontecendo”, completou.
"Desrespeito e egoísmo"
Para o Padre Josué Bosco, vigário da Paróquia de Nazaré, "a corda do Círio é o símbolo de comprometimento com o sagrado", "O romeiro que faz sua promessa em ir na corda, promete à Nossa Senhora que vai ser um dos responsáveis de levá-la até o destino, quando a corda é cortada, se vive uma interferência do homem com o sagrado", critica.
Conforme o sacerdote, "é um desrespeito e caridade para com aqueles que buscam agradecer ou alcançar uma graça através da intercessão da Virgem de Nazaré". O representante da Igreja complementa que "o corte da corda antes da hora não é uma atitude correta, mas uma atitude egoísta e de desrespeitosa com os inúmeros irmãos na fé que só buscam agradecer e fazer seu pedido".
Círio de Nazaré
Segundo o site oficial do evento, o Círio é uma manifestação de fé e devoção à Nossa Senhora de Nazaré, realizada há mais de 200 anos em Belém. Atualmente, a festa católica foi reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial pelo Iphan e declarado Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO.
“A história do Círio começa em 1700 com o achado da Imagem de Nossa Senhora de Nazaré pelo Caboclo Plácido, às margens de um riacho localizado próximo de onde hoje se ergue a Basílica Santuário de Nossa Senhora de Nazaré”, diz o site.
A devoção à Nazaré cresceu e, em 1793, aconteceu a primeira procissão em homenagem à Padroeira dos paraenses. Desde então, o Círio é realizado todos os anos, reunindo sempre um número maior de fiéis, hoje estimado entre 2 milhões e 2,5 milhões de pessoas pelas ruas da capital paraense.
A Festividade ocorre em outubro com a realização do Círio e de outras 12 procissões, como a Trasladação, a Romaria Rodoviária, a Romaria Fluvial, o Círio das Crianças e o Recírio, dentre outras. Durante toda a quinzena festiva, também há extensa programação de eventos: missas, vigílias de oração, o Arraial de Nazaré, o Círio Musical e a descida da Imagem do Achado, do Glória para o Altar da Basílica Santuário, onde fica durante os quinze dias de festa para visitação.
Equipe DOL Especiais:
- Lucas Contente é repórter do portal DOL. Nascido na cidade de Muaná, na Ilha do Marajó, e criado desde os nove anos em Belém, é formado em jornalismo pela Faculdade Estácio FAP desde 2023.
- Anderson Araújo é editor e coordenador dos conteúdos especiais do Dol. Formado pela Universidade Federal do Pará (UFPA), em 2004, e mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Porto (Portugal), em 2022. É também autor de dois livros de contos e crônicas publicados em 2013 e 2023, respectivamente.
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