Quando pensamos em um mundo que por muito tempo tratou corpos de pessoas gordas como inferiores e de forma jocosa, é comum lembrar de "piadas" ou frases como: “Olha ai, lá vai a gordinha”. “Você vai explodir se continuar comendo desse jeito”. “Tenho uma dieta ótima para você”. “Como é namorar uma gorda (ou um gordo)?” e muitas outras. Esse tratamento é mais comum do que se imagina e reflete como a estrutura social se concebeu acerca da falsa ideia de que o corpo de uma pessoa gorda é público e passível de opiniões - na maioria das vezes, as piores possíveis.
Frequentemente estigmatizada, a palavra “gordo(a)” esconde uma série de invalidações que menosprezam e inferiorizam pessoas gordas e nesse cenário, o termo gordofobia entra em cena como uma construção ideológica opressora.
Mas, afinal de contas, por que corpos mais volumosos passaram a ser vistos como uma afronta à busca pelo "padrão" estético’ que coloca a magreza no pódio dos objetivos e metas de vida de milhares de pessoas? Por que a magreza ainda é vista como sendo o "ideal" para ser aceito em uma sociedade dita "moderna" e à frente das lutas pela quebra de paradigmas?
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Conversamos com a ativista do movimento anti-gordofobia e criadora do projeto “Meu Corpo Sou Eu”, Néliane Simioni, que retrata essa luta pelo olhar de quem passou por tanto preconceito e hoje busca no conhecimento uma forma de se amar e se libertar das amarras sociais ajudando outras pessoas nessa descoberta.
‘Só queria que gostassem de mim’
“Acreditava que nunca seria aceita pelas meninas da sala, que, diferentes de mim, eram magras, gostosas, 'normais'…”
A frase é parte do ensaio pessoal intitulado “Gorda”, escrito por Néli Simioni e publicado na Revista Aluvião, em 30 de junho de 2017, dez anos após ela ter realizado uma cirurgia bariátrica. O procedimento pelo qual passou a levou a busca pelo amadurecimento na forma de olhar para o próprio corpo, pensá-lo como uma identidade e o que o atravessa.
Como muitas histórias de pessoas gordas, a de Néliane pode até se confundir com a sua, que está lendo essa matéria. Muitas pessoas recorrem ao emagrecimento como forma de serem aceitas. Aos sete anos de idade, a vontade de emagrecer era retratada nas linhas do diário de infância e na adolescência, a descoberta de um primeiro amor a fez achar que precisaria ser magra para conquistar o menino por quem havia se apaixonado.
“Lembro de ter registros nos meus diários de infância de que eu queria emagrecer para deixar meus pais felizes. Eu fui uma adolescente em guerra contra meu corpo, fiz muitas dietas dos mais diferentes tipos, perdi peso, ganhei peso e vivi muito intensamente o ‘efeito sanfona’”, revelou.
Como muitos brasileiros, Néli se submeteu ao procedimento de bariátrica e ainda muito jovem, aos 19 anos de idade. Porém, um estudo recente da Universidade de São Paulo (USP) mostrou que cerca de 92% das pessoas que se submetem à intervenção (9 em cada 10) voltam a ter um reganho de peso. Foi o caso da ativista. E nesse meio tempo, uma chave virou em sua cabeça.
“Quando eu começo a ter esse reganho de peso, eu experimento novamente a sensação de inadequação e de fracasso, que era muito familiar para mim, pensando em quem eu fui criança, quem eu fui adolescente. Mas dessa vez, com a maturidade e com os recursos emocionais, comecei a fazer terapia e foi um período em que eu estava começando a ter contato com temas e pautas do movimento feminista e pensar o meu corpo para além da forma física, além de uma imagem. Quem eu era, qual o meu papel no mundo?” , conta.
Opressões da gordofobia
“Todos nós somos reféns da gordofobia”
Muitos aspectos sociais tendem a fazer uma associação do corpo gordo à obesidade, o que é um erro, segundo a ativista. Néli contou que ao entrar no mestrado, seguiu uma linha de pesquisa intitulada de ‘Estudo das corporalidades gordas’, pensando-os por outra perspectiva.
“Eu não acredito que uma pessoa gorda é uma pessoa doente. Acredito que a obesidade é uma construção sociohistórica que tem outras relações.”, pontua.
Néli acredita que a aceitação por si só, é um mito, pois ela coloca em xeque um fim muito parecido com a busca por um padrão ideal, partindo de um mesmo lugar que é colocar o corpo gordo como inferior ao corpo magro. “Já que eu não alcancei esse emagrecimento, eu posso tentar aceitar o meu corpo”, diz.
A gordofobia entra em cena como um fator opressor e alinhado às ideologias sociais. Desse modo e como prática naturalizada na sociedade, ela acontece o tempo todo, desde a sua estrutura, como por exemplo em espaços públicos onde não há cadeiras para pessoas gordas, nas catracas, nos assentos dos ônibus, aviões, nas macas dos hospitais etc.
“A estrutura material da sociedade não foi pensada para que corpos de pessoas gordas caibam e a gente tem uma patologização desse corpo também como um fator para que esse corpo seja sempre questionado, diminuído, desumanizado”., destaca.
Para além do preconceito e da pressão estética por um padrão que geralmente envolve uma mulher magra, branca e jovem, a gordofobia também traz consigo outras opressões, como o classicismo, etarismo e racismo, segundo a comunicadora e destaca que o mercado lucra com a insatisfação feminina.
“O sistema capitalista nos divide entre corpos e subjetividades e o corpo vai sendo progressivamente transformado em um produto. É como se cada ‘pedacinho’ do nosso corpo pudesse sofrer intervenção. Então, eu posso fazer botox, tem creme para celulite, academia. Se faço bariátrica, depois tem a [cirurgia] plástica, tem silicone ou não. Então a gente olha para o nosso corpo como se ele fosse alheio a nós e como se ele pudesse sofrer upgrades o tempo todo, como uma mercadoria. Mas não é assim.”, afirma.
E acrescentou que o movimento vai mais além na busca por direitos. “Eu acredito na luta anti-gordofobia como um caminho para uma transformação social. Não se trata só de uma conquista, uma identidade. É uma garantia que pessoas gordas precisam ter acesso a direitos básicos, de políticas públicas.”, pondera.
‘Meu Corpo Sou Eu’
“O nosso corpo é a nossa matéria. É a partir dele que a gente está no mundo e que a gente se movimenta no mundo”
Buscar o questionamento do que nos pertence, quem somos e o nosso papel no mundo, pode não ser uma tarefa simples de ser feita, mas também não é impossível. Apesar da barreira do preconceito imposto todos os dias às pessoas gordas, a comunicadora fala que é possível entrar em um processo em que o indivíduo busque por uma autonomia onde ele mesmo se questione acerca de sua autopercepção.
“Eu acredito em um processo que pode te garantir uma autonomia para questionar e para fazer suas próprias escolhas. Adquiri conhecimento porque entendi que meu corpo é parte de quem eu sou e respeito esse corpo, a minha trajetória. Ele é meu meu aliado na busca por um mundo em que eu acredito.”, destaca.
O mito da aceitação
O mito da aceitação pode ser uma linha de chegada incerta, até mesmo utópica, como se houvesse um lugar onde finalmente estivéssemos feliz com nossos corpos e aparências, mas o caminho deve ser olhado por outras lentes.
“Eu acho muito injusto a gente ficar esperando essa aceitação que não existe. Não é uma linha de chegada que você vai ultrapassar e dizer ‘ufa, agora me aceitei’ e o corpo não é um problema.”, diz.
Para além dessas características, Néli conta que nossas emoções também influenciam na forma como nos vemos: “tem mil fatores que vão influenciar o jeito que a gente se olha e olha para o nosso corpo. Essa aceitação não é simplesmente uma mágica, isso não existe. Então se trata de um outro processo. Como é que eu posso olhar para o meu corpo de um jeito mais acolhedor, mais generoso, respeitando esse corpo”.
E acrescenta. “Quando a gente começa a buscar conhecimento e a questionar as estruturas, a nos perguntar quem dá os sentidos? Como esse padrão foi criado? Por que eu tenho que ser uma mulher magra? Da onde vem tudo isso?”, complementa.
“Isso não é sobre corpo”
“É distante a gente pensar em um mundo sem a gordofobia, mas é o meu ideal de mundo, é a minha luta”
Aos 36 anos, Néliane Simioni é criadora do projeto anti gordofobia ‘Isso Não É Sobre Corpo', que nasceu em 2021 no formato de podcast e neste ano de 2024 passa a se chamar Meu Corpo Sou Eu. A iniciativa surge como uma bandeira de orgulho e identidade com o objetivo de combater a gordofobia e contribuir para o letramento social sobre a opressão. Na primeira temporada, contou com 11 episódios e trouxe grandes nomes do movimento anti-gordofobia, como Júlia Del Bianco, Jéssica Balbino e outras.
O espaço conta com diversos episódios sobre os temas que atravessam os aspectos da gordofobia e debates acerca dos corpos gordos, fazendo as pessoas entenderem e se interessarem pelo tema, olhando para seu corpo e para o outro com por outro viés. Ela destaca que essa luta é de todos e deseja que as pessoas se sintam parte desse movimento.
“É um projeto que busca promover um orgulho às identidades gordas, então um espaço onde essas pessoas caibam, sintam que é sobre elas, para elas e com elas que o debate é feito. Desse modo, a gente pode alcançar mudanças e políticas públicas e respeito às pessoas gordas.”, enfatiza.
O projeto está na fase de campanha de financiamento coletivo para lançar a nova temporada que terá oito episódios do podcast e estará aberta até o dia 2 de agosto na plataforma Catarse, com valores a partir de R$35,00. Quem desejar colaborar com a continuidade da iniciativa, pode contribuir por meio deste link e seguir os perfis @nelisimioni_ e @meucorposoueu.
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