Desde quando Bichara Gaby criou uma tirinha à convite de João de Jesus Paes Loureiro para a “Folha do Norte”, e este a publicou acompanhada de um texto dizendo que estava ali a o primeiro quadrinho amazônico publicado, em 1972, muitas outras contribuições vieram para esta cena criativa que se renovou especialmente na últimas duas décadas na Região Metropolitana de Belém. Uma história cada vez mais registrada, contada e ampliada a cada nova celebração do dia 30 de janeiro, Dia do Quadrinho Nacional.
“Aqui a produção é muito pautada pela atuação independente dos quadrinistas, isso ficou bem evidente na minha pesquisa”, diz Juliana Angelim, que concluiu recentemente o Mestrado em História Social da Amazônia da Universidade Federal do Pará - UFPA, recebendo o Prêmio Álvaro de Moya, na quarta edição das “Jornadas Internacionais de Quadrinho (ECA/USP - 2017)”, com o trabalho “A Nona Arte na Amazônia: Um Panorama do Cenário de Histórias em Quadrinhos em Belém”.
A formação de grupos e parcerias entre artistas, tanto para produzir, como divulgar seus trabalhos, também é uma característica que vem desde o Estúdio Casa Velha, que assim lançou “Belém Imaginária” e “Encantarias e Lendas da Noite”, em 2004 e 2005, com alcance nacional, até a geração mais atual do quadrinho metropolitano, que trouxe movimentos como o Coletivo Açaí Pesado e o recém-criado “Projeto Zagaia”, uma coletânea de quadrinistas afroamazônidas financiada pela lei Aldir Blanc.
“Zagaia é uma lança africana também incorporada pelos indígenas aqui, que usam até hoje para caça e para guerra”, explica Elton Galdino, artista visual e pesquisador que deu início ao projeto. Em sua primeira etapa será feito o mapeamento dos quadrinhistas afroamazônicos que atuam na Região Metropolitana, já com uma produção intensa ou publicados. “Depois do mapeamento, vamos partir para uma roda de conversa [virtual] sobre assuntos relativos ao negro na Amazônia, a forma como a gente se percebe e reproduz no quadrinho e desse debate virão os quadrinhos publicados como coletânea”, explica.
A previsão é que a publicação coletiva ocorra em março, com os exemplares sendo distribuídos em escolas, bibliotecas públicas e outros pontos de leitura gratuita. “A gente quer tentar romper com barreiras que o racismo estrutural nos impõe. Quando a gente vê produções e eventos de HQ, estamos sempre em minoria, o que é estranho, porque a maioria do povo brasileiro se autodeclara preto ou pardo. E é importante levar essa coletânea para as escolas, comunidades, para formar novos leitores e artistas”, diz Elton.
Essa preocupação de formar novos leitores e quadrinistas é algo que sempre nasceu dos próprios artistas já estabelecidos, que foram se mobilizando cada vez mais para ocupar os escassos espaços culturais abertos a eles. “O ‘Ponto de Fuga’, da década de 1990, por exemplo, teve uma atuação importante na cidade, no sentido que trabalhava com fanzine (produções artesanais) e era engajado em fazer programações, exposições de quadrinhos e movimentar o cenário”, aponta Juliana.
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O citado grupo foi formado a partir de uma oficina que o desenhista Joe Bennett - hoje conhecido internacionalmente por seu trabalho com grandes editoras como Marvel e DC Comics - e o roteirista Gian Danton ministraram no Centur. As sucessivas programações realizadas por eles e outros grupos, como o Catarse Quadrinhos, formado em 2007, culminaram na “Semana do Quadrinho Nacional”, programação fixa desde 2015, atualmente tendo à frente nomes como Andrei Miralha, referência para as artes visuais na cidade.
DIVERSIDADE
A última década foi ainda mais especial para a cena que, ao se abrir para atrair mais público e artistas, começou enfim a trazer maior diversidade também para as histórias, hoje contadas por artistas e pesquisadores como Beatriz de Miranda e Rodrigo Leão. Ela já tem importantes trabalhos que abordam as relações de gênero em histórias em quadrinhos de super-heróis, focando na sexualização das heroínas. “É algo que eu já percebia quando lia. Comecei a encaixar o estudos feministas em como essas mulheres que têm superpoderes são desenhadas”, explica.
A primeira publicação dela em HQ foi na coletânea “Mulheres & Quadrinhos” (Editora Skript-2019), em uma história que também trazia à tona o assédio que as mulheres sofrem nos eventos de HQ, “tanto palestrando, como quadrinista ou apenas como espectadoras”, pontua. Atualmente, ela é um exemplo do alcance que esses novos artistas têm tido nacionalmente, com projetos como a HQ biográfica de Antoine de Saint-Exupéry (Editora Skript), que ela assina ao lado de Mônica Cristina Corrêa, representante da família do escritor-aviador no Brasil.
Semana do Quadrinho começa hoje
Para movimentar ainda mais essa cena, a “7ª Semana do Quadrinho Nacional” vai ser realizada totalmente virtual e com acessibilidade em Libras. O evento, realizado pela Fundação Cultural do Pará inicia neste sábado, às 17h30, com uma live no Facebook sobre quadrinhos na Amazônia, e segue até a quarta-feira, 3, com Desafios dos Quadrinhos e masterclasses. As inscrições são gratuitas e podem ser feitas até o dia de cada atividade.
“Essa situação que a gente vive hoje nos colocou nesse desafio de programação virtual, mas acho até que para os próximos anos ela pode complementar com a presencial”, diz Andrei Miralha. Ele explica que as masterclasses ocorrem em formato de vídeochamada, fornecendo certificado aos participantes e trazendo duas temáticas atuais: a inclusão social nas HQs e a produção feminina.
Já os desafios reproduzem uma das atividades mais divertidas que haviam no evento presencial. “As pessoas vão ter que criar personagens na hora, a partir de elementos sorteados pelo instrutor. Os melhores de cada dia ganham brindes de incentivo, material de desenho, camiseta. O instrutor é um quadrinista e vai também dar algumas dicas de desenho, de criação, como elaborar o desenvolvimento de uma história em quadrinho”, adianta Andrei.
Artistas querem ampliar público
Rodrigo Leão se destaca no cenário local especialmente por trazer o quadrinho como uma forma de comunicação comunitária, de facilitação do acesso à informação. “Eu percebi que é uma ótima forma de começar a conversar, chegar com as pessoas. Porque não tem só o recurso do texto, tem a imagem, é feito a mão [no caso dos fanzines], são coisas chamativas e facilita a forma como as pessoas absorvem aquela informação”, considera.
Ele também faz parte do coletivo de artistas negros e negras Ilustra Pretice, que surgiu em 2018, englobando artistas de diferentes áreas da arte visual. “A gente pensou nessa necessidade de uma rede para mostrar as pessoas negras que produzem arte e que representam negros em suas histórias. A gente pede para que usem a hashtag #ilustrapretice em suas publicações artísticas, para que a gente possa rastrear e conhecer esses artistas. Tem muita gente que não conhecíamos”, destaca Rodrigo.
Em dois trabalhos recentes, o quadrinista traz um pouco dessas duas questões: o primeiro é uma zine para o Coletivo Aparelho, para orientar as pessoas da comunidade sobre a Covid-19; e o outro é a zine “Cartas Náufragas ou Nós, Aqui e Agora” (2018), que recebeu ainda um texto de Monique Malcher, para entrar na coletânea nacional “Quadrinhos Queer”, da editora Skript, previsto para lançamento este ano.
EDITAIS
Ainda hoje muito da cena é produzido do próprio bolso dos artistas, a partir de financiamentos coletivos na internet - a HQ “Pretérito Mais Que Perfeito” foia primeira a ser publicada assim por aqui, em 2014, organizada por Otoniel Oliveira - e, claro, os editais também são uma saída, apesar de ainda serem poucos. Esta semana mesmo, Woylle Masaki conseguiu garantir o patrocínio em edital do Banco da Amazônia para produzir o quadrinho “Mundo de Tailus”, previsto para o final deste ano.
A HQ traz uma história apocalíptica, fruto da desvalorização da natureza e da cultura, levando a um mundo desértico. Woylle explica que o trabalho traz referências da arte de povos ancestrais amazônicos marajoara e tapajônico, misturando-os com elementos da atualidade. “Além disso, a HQ vai trazer um sistema de RPG, possibilitando ao jovem viver a história abordada no quadrinho, tendo a mesma temática e abrindo espaço para levar o projeto para dentro das instituições educacionais”, explica.
Como um nome que tem despontado na cena dos quadrinhos locais, ele a destaca como muito dinâmica. “De uns anos pra cá, as pessoas começaram a se movimentar bastante no quadrinho de Belém, formando grupos, fazendo trabalhos autorais e lançando pequenos formatos, impressões em pequenas quantidades, que você vai em gráfica rápida ou até imprime em casa mesmo. Com a pandemia, tem desenhista fazendo live falando do trabalho, ensinando a desenhar, querendo manter esse movimento”, aponta.
SEMANA DO QUADRINHO NACIONAL
- Live de Abertura “Quadrinhos na Amazônia”
Convidados: Ty Silva- Coletivo Açaí Pesado (PA); Ademar Vieira- Estúdio Black Eye (AM); Romahs (AM); Woylle Masaki (PA); Robson Marone- Coletivo Contos da Terra (PA)
Quando: Hoje, às 17h30;
Link da sala para participação: Instagram @ilustrafcp e @bibliotecadocentur
- Desafio - Categoria Juvenil
Público: de 13 anos a 30 anos
Ministrante: Volney Nazareno
Quando: Segunda a quarta-feira, das 16h às 18h
Link para videochamada no Google Meet: meet.google.com/xsp-rndd-ixt
- Desafio - Categoria Infantil
Público: 7 a 12 anos
Ministrante: Mandy Barros
Quando: Segunda a quarta-feira, das 15h às 17h
Link para videochamada no Google Meet: meet.google.com/jqd-hpnd-cmw
- Masterclass
“Quadrinhos & Inclusão Social”
Ministrante: Thayz Magnago (HQs do Lucas)
Quando: Segunda, às 19h
Link para a videochamada no Google Meet: meet.google.com/uej-mpda-apa
- Masterclass “A Produção Feminina Nos Quadrinhos”
Ministrante: Dani Marino
Quando: Terça, às 19h
Link para a videochamada no Google Meet: meet.google.com/uej-mpda-apa
Quanto: Toda a programação é gratuita.
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