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DAQUI TE ESCREVO

Um cafezinho adoçado com nossa memória repartida na cozinha 

A coluna Daqui te Escrevo, escrita por Anderson Araújo, traz uma crônica para lembrar que, às vezes, nossas memórias podem ser mais nítidas do que as fotos de alta resolução do melhor e mais caro celular de última geração. Leia e compartilhe nas suas redes!

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Imagem ilustrativa da notícia Um cafezinho adoçado com nossa memória repartida na cozinha  camera Arte: Emerson coe e Thiago Sarame

Era pra ter morrido como um anjo afogado, ali pelos sete anos, em um igarapé da Vigia. Morreu menino, diriam, e haveria toda uma especulação sobre quem eu me tornaria adulto. Ele falava pouco, nunca disse o que queria ser quando crescesse. Uma vez contou que gostaria de ser palhaço, talvez porque se lembrasse da vez que esteve em um circo e riu do homem espalhafatoso e maquiado no centro do picadeiro. Pereceu novinho, pobrezinho, repetiriam. Ou, nem lembrariam de nada por ter sido há quase 40 anos.

As lembranças vêm como água. Começam numa fonte tênue, um pequeno flash, e vão crescendo, uma puxando a outra, até engrossar e virar um rio e, mais tarde, desaguar no oceano, o da memória coletiva, esse emaranhado de histórias confundidas, recontadas e partilhadas com todos, sem ninguém saber o que é verdade ou mentira.

Entendi rápido que minha boa memória não é minha, exclusivamente minha. Vem de família. Tanto quanto pelo sangue nas veias, como na costura em conjunto desse passado que considero meu, mas nem é. Minha mãe é uma grande memorialista e, se tivesse mais oportunidades, repertório literário e intimidade com as letras, talvez escrevesse muito bem o que viu e viveu.

Sentados à mesa da cozinha, tomando um café, sempre rememoramos. Uma das melhores coisas que me aconteceu, ao longo dos anos, foi me tornar uma velha fuxiqueira nos bate-papos com a senhora minha genitora. Nossa idade nem é tão distante, pois me pariu aos 17 e hoje somos bons amigos, com uma geração de diferença, muito além da relação maternal.

Foi ela quem puxou o fio que chegou em Ana Lúcia, a heroína que me salvou de morrer ainda pequeno. É singular como vêm essas lembranças: aos borbotões, sem ordem, sem nada que possa impedir que elas cheguem, como uma enxurrada violenta, trazendo e levando tudo pela frente, deixando despojos pelo chão depois que passam. Cabe a nós catar, limpar e perceber esses retalhos enlameados como tesouros perdidos.

Antes de chegar em Ana Lúcia e na minha quase morte precoce, lembramos de Otílio, um amigo de meu pai. Gordo feito um rei, de uma espontaneidade que só os nordestinos possuem – andava nu pela própria casa, comia e bebia de tudo, feliz que só, e fazia as piores/melhores piadas para o desespero da esposa Benedita, que, obviamente, era uma mulher muito centrada e discreta, ponto de equilíbrio daquele casal insólito e amoroso.

Otílio e meu pai sustentaram os filhos na função de "prestação" – os mascastes urbanos que vendiam mercadorias de porta em porta e cobravam parcelas mínimas, as suaves prestações, dos modestos fregueses, quando a única linha de crédito para pobres era esse sistema de compra e venda em domicílio, muito antes de inventarem o delivery e o crediário nas grandes lojas de departamento e nos magazines de fast fashion – já tem o cartão C&A, senhor?

Juntos, quando havia alguma folga para eles que trabalhavam de sol a sol, os amigos negociantes reuniam as famílias e partiam para algum balneário próximo para tomar cerveja e levar a molecada para um banho, principalmente, em Outeiro e Mosqueiro. No dia do meu quase falecimento, variamos a rota e fomos fazer nosso passeio em um verde igarapé de Vigia de Nazaré, a umas três horas de Belém. Os carros cheios de meninos, frango e farofa, com Amado Batista e João Mineiro e Marciano torando no toca-fitas.

Chegando ao nosso idílico destino, ao ver as outras crianças, me enturmei. Mas minha atenção logo se deteve em Ana Lúcia, filha mais velha de Otílio. Para um menino como eu, foi como ver uma atriz de televisão, nos padrões de beleza do final dos anos 1980. Os cabelos encaracolados e dourados, os olhos verdes e o agreste sotaque cantado da adolescente me prenderam de um jeito único. Fora a atenção que ela me deu puramente por eu ser um menino pequeno. Beijos e abraços fraternos que uma moça que amava crianças daria em qualquer garotinho com cara de desamparado, como eu era. Porém, meu eu apaixonado, clamava por uma paixão recíproca e a desejava amorosamente. Em tão tenra idade, fui diagnosticado com romantismo prematuro inveterado.

Foi para chamar atenção de Ana Lúcia que, sem pensar nem ter ideia de como nadar, pulei na parte funda do igarapé. Havia uma indecisão das crianças sobre a profundidade da área perto da ponte que atravessava o pequeno córrego gelado. Então, galhardamente, acabei com o impasse. Tomei distância e saltei, sem medo nenhum. Tchibum!

Não deu pé! Fui e voltei à superfície varias vezes, já vendo o filminho que resumia minha curta vida e pensando “se eu morrer, minha mãe vai me matar”. A morte vinha geladinha nas águas esverdeadas e já havia desistido de tudo naqueles segundos entre ver o escuro profundo do afogamento e olhar o céu azul vivo quando voltava à tona no desespero por respirar.

Quase sem fôlego senti abraço salvador: Ana Lúcia, linda e loira, minha salva-vidas, entrou em ação.

Ao ver que eu estava prestes a virar presunto, ela pulou para me livrar e me arrastou até a beira. Não me lembro de tanta coisa. Só da vergonha de ter cometido um ato tão estúpido e do colo macio da minha heroína. Nem dos ralhos de minha mãe e de meu pai me recordo. Mas dos peitos e da cintura de Ana Lúcia, do contato com a pele dela, de como ela me acalmou, ah, tudo me vem nítido agora, se encrustou por aqui até hoje.

Depois desse episódio, não voltamos mais com Otílio e família nos balneários. No entanto, eles nos receberam em sua casa algumas vezes. Ele tinha um filho da minha idade e meu xará, com quem tentaram que eu fosse amiguinho, mas não havia afinidade com aquele menino magrinho de cabelos amarelos, como os da mãe, e meu grande interesse sempre foi Ana Lúcia, minha salvadora e paixão instantânea.

“Guardo as melhores lembranças só na cabeça mesmo. Naquela época, a gente não tinha dinheiro para ter uma máquina fotográfica. Diferente de hoje, em que tudo é fotografado, nada era registrado”, disse minha mãe, com alguma saudade de quando os clãs dos mercadores nordestinos históricos se reuniam para felicidade geral da nossa pequena nação.

Talvez ela nem saiba que as memórias que guarda falam mais alto do que qualquer fotografia em alta resolução. Na conversa que trouxe Ana Lúcia, mantive a boa recordação de Otílio. Ele, nosso querido e imenso imperador bonachão, escuro, de bigodes, voz de trovão, de uma inteligência vivaz, apesar de não ter aprendido a ler e escrever.

Deixei fora da mesa o dia em que quase morri, para não estragar a doçura desse afeto nosso, de minha mãe e eu, que é trocar entre nós os passados e entrelaçar essas histórias, que, se estivessem numa foto, já teriam caronchos de umidade ou mesmo se perdido numa gaveta por aí, mas, entre um gole de café e outro, ressurgem em cores e avivadas, como um filme em 4k.

- Será que Otílio ainda é vivo? – Minha mãe me pergunta.

- Ana Lúcia deve ter mais de 50 anos. – Respondo a ela.

E sorvemos nosso cafezinho, sentados à mesa da cozinha, como duas comadres, meio assustadas como a passagem do tempo.

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Anderson Araújo é jornalista e escritor e escreve às sextas-feiras, no DOL.

Outas crônicas e contos você pode ler no blog do autor, o Daqui te Escrevo.

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