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DAQUI TE ESCREVO

Richarlison, um pombo que reinaugurou o futuro do Brasil

Nesta sexta-feira (25), a coluna Daqui te Escrevo, escrita pelo jornalista Anderson Araújo, se rende à Copa e ao herói do jogo contra a Sérvia, o atacante Richarlison.

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Imagem ilustrativa da notícia Richarlison, um pombo que reinaugurou o futuro do Brasil camera Arte: Emerson coe e Thiago Sarame

Antes de qualquer coisa, esclareço que não sou jornalista esportivo. Se você busca essa especialidade, vá até a coluna do experiente companheiro Gerson Nogueira, que está no Catar trazendo as melhores informações sobre a Copa. Sou apenas um observador do cotidiano que nao foi arrebatado por essa alegria chamada futebol. Nem quando meu pai, o saudoso Seu Campelo, um ardente torcedor do Paysandu, me levava à Curuzu e ao Mangueirão para ver os bicolores– , embora ainda me lembre daquela final que garantiu ao Papão o campeonato da Segundona contra o Guarani, em 1991, com Cacaio e Rogerinho em campo. Apesar da memória, esse esporte nunca me pegou de jeito. Até porque, futebol não é só futebol. E foi precisamente por esse motivo que acabei deixando essa paixão na geladeira.

Mas Copa é outra coisa.

Ontem, pouco antes do jogo, encarei a rua de minha mãe com estranheza. Nada das bandeirinhas, dos enfeites, das pinturas espalhadas nos muros e calçadas. Muito diferente das copas anteriores, quando a passagem inteira, como tanta outras país afora, se organizava para, num só coração, expressar a sincera e apaixonada torcida pela Seleção. Nem parecia que, às quatro estrearíamos contra a Sérvia.

Senti a diferença, mas tudo bem.

Entendo que é parte de uma série de fatores que vai desde o Mundial ser realizado em novembro/dezembro até as querelas políticas que levaram o verde e o amarelo representarem, hoje, quem está ensandecido nos bloqueios de estradas, nos protestos em frente aos quarteis, esperando com fé absoluta a prisão do Xandão e a intervenção alienígena.

Uma minoria que, cá entre nós, causa fortes sentimentos, que transitam entre a repulsa, a vergonha alheia e a pena.

Grande parte dos brasileiros, inclusive muitos dos que que votaram no candidato derrotado, não quer pôr uma camisa amarela e ser confundido com essa galera apoiadora de golpe militar e outras barbaridades antidemocráticas alimentadas por teorias conspiratórias e fake news.

Mas parece que essa angústia de ver um símbolo de todos ser usurpado em prol da bandeira política de alguns começou a ruir. E o início do fim veio pelos pés (ou seriam patas?) de um Pombo.

Eu mesmo não acreditei quando o vi o segundo gol do camisa 9, Richarlison. - Foi uma bicicleta?, pensei, já que de futebol entendo lhufas. Nem foi. Era o tal do voleio, me contou um amigo que entende do riscado. Num movimento de balé, de artes marciais, de desafio à lei da gravidade, ele chocou o mundo. Precisei do replay e ver em câmera lenta para acreditar naquela beleza, porque posso não entender muito bem sobre o Mundo da Bola, mas o belezas me fisgam e me comovem sempre.

Acredito que nem o zagueiro sérvio quis impedir a magia daquele momento inesquecível e, mesmo adversário, ele se encolheu com medo da bola, em movimento inconsciente, mas certeiro, que garantiu a grandeza daquela hora feliz para 215 milhões de brasileiros que viram o gol, certamente, boquiabertos. O goleiro Vanja não chega para cumprir seu papel, atormentado que estava pela surpresa, e a bola balança a rede sem que parecesse ter existido outra saída.

Ali o País destravou e reencontrou o amor antigo pela camisa da seleção e por si próprio.

Por uma fenda rasgada pelos pés de um pombo, esquecemos ascontendas políticas, a cisão de projetos, o ódio de classe e encontramos a paz coletiva, a paz expressa pelos berros, pelo riso, pela sensação de fazer parte de um troço imenso, partido, desigual, injusto, cruel, mas também ternamente nosso, incontornavelmente nosso, chamado Brasil.

O gol veloz mudou a rotação da terra, como ocorre em eventos que alteram o curso da história. Richarlison, que já vinha discretamente construindo sua reputação de herói, nasceu de vez para os brasileiros. Agora não era mais coisa do clubinho dos que prestam atenção em futebol. Ele havia sido finalmente adotado por todos nós. Visto, finalmente, como um artista de talento inegável diante de sua obra. Incontestavelmente, o menino-pombo entrou para a estima do nosso inconsciente coletivo e em nossa memória afetiva que costura uma longa linha nessa paixão conduzida pela bola, a qual inclui grandes como Garrincha, Pelé, Sócrates, Zico, Romário, Ronaldo, Cafu e tantos que guardamos amorosamente no nosso orgulho infantil; orgulho no melhor sentido, o da maravilha da criança em reconhecer e abraçar como sua a fantasia no mundo.

O gol de Richarlison trouxe de novo a esperança no Hexa, mas também destruiu a vergonha de sonhar com essa felicidade mesquinha de sermos os melhores e apontou sem pudor para novos tempos. O pombo, sem a menor cerimônia, reinaugurou nosso futuro.

Pode ser um pequeno gesto, uma alegria de início de torneio, o qual não fazemos a menor ideia de como vai terminar. Mas Richarlison apresenta e representa a possibilidade de recompor nosso panteão de heróis e nos obriga a olhar em perspectiva para Neymar, nossa estrela maior até então, que ontem não brilhou e esteve fadado a um tornozelo inchado e ao choro no final, que contrastou com a alegria de ter um Brasil grande fazendo com maestria aquilo que lhe deu fama nos quatro cantos da Terra.

As comparações entre eles dois, Richarlison e Neymar, já estão aí e as deixo para os colegas que acompanham profissionalmente as brilhantes carreiras dos dois nesse mundo espetaculoso e bilionário do futebol. Passo a bola para quem trabalha dia e noite e é apaixonado, de fato, pelo futebol – não eventualmente pela época da Copa, como eu.

Muito além das análises técnicas e políticas acerca dos atacantes, quero agora essa decisão egoísta, caramba!, de levar esse caneco de novo. Meu foco, depois daquele encantamento pelo gol, é acreditar no Pombo, essa ave que simboliza o comum, encontrada em qualquer telhado ou praça das cidades, mas que também já representou as mensagens e códigos trocados a longas distâncias ou, ainda, o que não se define pela compreensão racional e só se explica pela fé, a fé indestrutível no sagrado.

Um pombo chamado Richarlison que, no final, carrega a missão de nos trazer a paz, mesmo que momentânea, vivida na euforia de quem sobe ao topo do mundo de taça na mão com uma divindade olímpica, mas nada grega. Um olimpiano com a nossa cara pardacenta, vindo da pobreza como a maioria de nós, de sorriso aberto e cabelos platinados de água oxigenada, dançando estranhamente como um pássaro, acenando a nós que só acreditamos num deus brasileiro, num deus que saiba dançar.

Anderson Araújo é escritor e jornalista da equipe do Dol, e escreve às sextas.

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